Vai um café?
Por Tite Simões
Ela surgiu na Inglaterra nos anos 60. Os ingleses tiravam rachas de motos entre um bar e outro, a pretexto de tomar café, mas, como conhecemos bem os ingleses, duvido que fosse só uma simples infusão da cafeína arábica. Tinha mais combustível naquelas xícaras do que no tanque das motos!
Para conseguir competir, os motociclistas preparavam as motos, especialmente as Norton, BSA e Triumph, com o que tinham à disposição: guidão baixo e só! Além disso, retiravam tudo que era desnecessário para aliviar peso, como para-lamas, suporte de placa, espelhos e ainda trocavam o banco espaçoso e pesado por uma espuma um pouco maior do que um mouse pad. Pronto, nascia o conceito café-race (ou simplesmente CR) que fez sucesso naquela década de 60 e agora voltou com tudo.
É que as motos de série atuais perderam o charme. Sim, o que temos hoje circulando pelas ruas são veículos tão cheios de plástico e sem personalidade que parecem Transformers de duas rodas. Teve a época das linhas arredondadas, depois veio a fase das linhas retas, depois nenhum cromado, aí colocaram apliques cromados, mas no fundo todas tem a mesma cara.
Só que as pessoas são diferentes e precisam ser diferentes. Senão o mundo seria uma chatice sem fronteiras. Há cerca de uma década alguns motociclistas inconformados com a mesmice que assola os departamentos de projetos, começaram a resgatar modas do passado. É a tal onda vintage.
Parece que o excesso de brinquedos eletrônicos e plástico injetado pode ter agradado à geração Playstation, mas não pegou todo mundo. Percebe-se claramente uma volta ao que era legal do passado. Tanto na moda como na indústria. E, certamente, chegou a carros e motos. Foi o relançamento do Fiat 500, o New Beetle, o Chrysler PT Cruiser (feio que dói), etc. Nas motos a Triumph tratou de renascer a Bonneville, com o mesmo desenho e até cores da versão antiga e a Ducati foi na onda com o lançamento da Scrambler, também inspirada no modelo dos anos 60. Sem falar na Harley-Davidson que sempre teve cara de vintage desde que nasceu.
Além disso, algumas pessoas queriam muito comprar uma moto, mas sem ficar com “cara de motoqueiro”. Não precisa ser muito especialista para perceber que a imagem da moto e dos motociclistas está seriamente arranhada. Moto virou sinônimo de problema para os engenheiros de tráfego e de segurança para a secretaria de Segurança. Motociclistas se acidentam e bandidos usam motos para cometer crimes. Pronto, está feita a desgraça. Por isso muitos motociclistas estão buscando formas de se diferenciar dessa categoria de “cachorros loucos”.
Faça você mesmo
As fábricas apenas vieram na cola da tendência mundial. Ficou cada vez maior a quantidade de pessoas que simplesmente não se contentavam com a mesmice dos produtos e foram buscar inspiração para se destacar na multidão. Começaram a surgir as café-racer caseiras, acompanhadas de outros estilos como Bratt ou Bobber e mais meia dúzia de tendências.
Na falta de uma moto estilo café-race pronta de fábrica – hoje temos a Triumph Thruxton e a Royal Enfield Continental – alguns mecânicos, com ou sem experiência, estão fazendo suas próprias café-racer. Algumas vezes a partir de motos novas, outras a partir de motos com até 30 anos de uso. E, segundo esses aficionados, nem sempre a moto de origem está em bom estado, pelo contrário, quanto pior estiver melhor. O plano é “levantar” uma moto que estava encostada e transformá-la em uma nova CR.
A receita é exatamente a mesma dos originais ingleses: aliviar tudo que é desnecessário e deixa-la o mais rústica possível. Os itens que toda CR deve ter são: semi-guidões baixos, tipo Tomaselli. Surgida em 1930 a Tomaselli é uma das primeiras marcas de acessórios para motos esportivas do mundo. E seu nome virou sinônimo de guidão fixado na suspensão. Também é permitido o guidão “morceguinho”, que dá praticamente o mesmo efeito dos Tomaselli, mas é fixado na mesa superior.
Uma CR legítima também precisa ter um banco monoposto com rabeta. Nada de garupa! De preferência essa rabeta deve ser revestida com o mesmo couro do banco. Também não pode ter para-lama dianteiro, mas por obra e obrigatoriedade da legislação, se for necessário, que seja de lata ou alumínio, jamais de plástico.
Para-lama traseiro nem pensar! Só o suficiente para instalar o suporte da placa da moto e mais nada. Alguns também retiram as laterais e no seu lugar colocam number plates, aquelas placas com numeração das motos de corrida.
E não pense que precisa ser moto grande! Hoje, uma das grandes curtições é criar uma CR a partir de motos 125 a 250cc. Até o famoso artista Tarso Marques chegou a criar uma linha usando a Honda CG 125 como base. E já vi até as saudosas Mobylette ganhando forma de café-race.
Na falta de produtos
Só que não para por aí. Como a ideia é deixar a moto mais parecida possível com as inglesas dos anos 60, alguns café-racers trocam os pneus atuais por algum de desenho mais antigo. E aí começam os problemas…
Como moto é um veículo que depende de apenas dois pontos de apoio, o equilíbrio e a estabilidade são diretamente ligados a esses dois pontos. Se um deles falhar, “babau”. Por isso não me agrada ver que alguns transformadores usam pneus traseiros na roda dianteira para deixar com aspecto mais parecido com as originais inglesas. E vão mais longe: tiram o freio a disco dianteiro e substituem por um freio a tambor retirado de alguma moto antiga.
Claro que a ideia não é tirar racha, nem daria, mas é uma moda que tem mais a finalidade de desfilar. Hoje em dia uma moto simples de 250cc ou 300 cc tem pneus e freios muito melhores do que as motos 500cc inglesas dos anos 60. Não é por isso que é preciso “piorar” uma moto para ela ficar mais parecida com as originais. Isso é muito discutível.
É óbvio que as motos dos anos 70 eram pilotadas por pilotos dos anos 70. Não tem como transportar uma moto de 40 anos para os dias de hoje e querer pilotá-la como se fosse uma esportiva atual. Lembre que os pilotos de 1970 não usavam raspadores de joelho em seus macacões de couro!
Essa é uma importante questão que a geração de customizadores precisa lembrar. Se vai mexer em itens como pneus e freios em uma moto mais moderna para ficar com cara de antiga, lembre-se de usá-la como se fosse uma moto antiga!
Arte em rodas
Quando se fala em customização de moto, tem de tudo. Desde mecânicos bissextos que compram uma moto em ferro-velho para devolvê-la à vida, até verdadeiros artistas que compram motos atuais para deixá-la com visual clássico.
Entre esses artistas, hoje já temos no Brasil alguns com padrão internacional. Já podemos fazer em São Paulo um tanque de gasolina, para-lamas, rabeta e até carenagem de alumínio laminado. Outros preferem manter a moto original e apenas incluir os itens estilo café-racer, preservando o estilo da época.
Só tem mais uma coisa que gosto de chamar atenção, além dos pneus, é o escapamento! Nos anos 60 a preocupação com saúde e meio ambiente era bem diferente de hoje. A legislação também. Por isso só acho um pouco fora de moda e até condenável o uso de escapamento direto sem silenciador. OK, sabemos que o estilo pede um ronco mais “nervoso”, mas é perfeitamente possível “engrossar” a voz de uma moto sem ficar fora da lei, basta acrescentar um silenciador.
Porque não faz o menor sentido gastar uma grana para se diferenciar dos “cachorros loucos” na aparência e na atitude agir da mesma forma. Tudo bem resgatar o passado, criar uma obra de arte em forma de moto, mas nunca se esqueça de que a sociedade evoluiu muito nesses quase 60 anos e não tem mais espaço para veículos barulhentos. Curta seu Café em silêncio!
Tite Simões – Jornalista, piloto de teste e instrutor do curso Abtrans de Pilotagem.
Contato: info@abtrans.com.br