O xing ling amadureceu
Nos últimos 10 anos, a forma de vender e fabricar automóveis chineses mudou assustadoramente. Lembro-me, como se fosse hoje, o dia que fui entrevistar o proprietário de uma revenda Effa. Se não me falha a memória, foi por volta de 2008 ou 2009. Naquela época, havia uma curiosidade sobre o M100, um pequeno monovolume que marcava a chegada dos carros chineses no mercado brasileiro.
O Effa 100 era bisonho. Tinha o escapamento preso literalmente com arame e acabamento que fazia o Uno Mille parecer um Bentley. O desempenho do carrinho era decepcionante, assim como sua instabilidade, que causava pânico. Depois de andar no M100 e retornar à loja, já no finalzinho da pauta, me virei para os entrevistados e disse: “Senhores, só para não correr o risco de dar o nome errado aos bois, me repitam seus nomes completos, por favor?”
– Para que você precisa do meu nome? Questionou o dono da loja.
– Porque estou te entrevistando! Devolvi.
– Melhor não, tem uns advogados atrás de mim, sabe como é!
– Mas você me deu uma entrevista, contou tudo sobre seu negócio. Desse jeito, não dá para publicar!
– Coloca tudo na boca do Fulano! Respondeu, apontando para o funcionário.
Voltei para a redação e decidimos abortar a história. Nem mesmo a percepção de dirigir aquela aberração da engenharia quisemos registrar. Naquele momento, toda aquela cena bisonha resumia o modelo xing ling de vender carros chineses. Era como uma feira popular, mas com o agravante de ter que emplacar o carro.
Bom amigo
Depois daquele episódio, em 2010, fui até Itu conferir o Chery Face. Um carrinho com visual mais simpático que o Effa, mas com qualidade deplorável. Semanas depois um amigo me telefonou dizendo que tinha comprado um. E perguntou o que eu achava.
Respondi que estava chateado por saber que ele não acompanhava meu trabalho. Se ele tivesse lido minha matéria sobre o Face, teria poupado o telefone e economizado uns R$ 30 mil. Até hoje nunca mais falamos sobre aquele carro.
Aos pedaços
Depois disso, naquele mesmo ano, durante a cobertura do Salão do Automóvel, que na época publicamos como o “Salão do Dragão” em alusão à grande quantidade de modelos chineses, presenciei um carro soltando os pedaços diante de meus olhos. Meu colega Júlio Cabral é testemunha.
O rapaz que estava dando polimento num Lifan 620, passava a flanela na porta quando a maçaneta despencou. Para o desespero do rapaz, o Cabral não conseguiu conter as gargalhadas. Sorte dele que só nós três vimos aquilo. E só agora estou contando!
Perspectiva
Mas, apesar de tudo, era certo que os chineses entrariam no eixo em pouco tempo e fabricariam automóveis tão bem quanto os sul-coreanos, japoneses, norte-americanos e europeus. Batendo um papo com um engenheiro que tinha visitado a China, ele contou que lá se fabrica de tudo, com níveis de qualidade e preços bem distintos.
“Lá tem aquela fabriqueta que monta o relógio xing ling mais vagabundo do mundo, assim como tem fábricas que oferecem um padrão quase suíço de precisão. É um país com um bilhão de habitantes e com uma demanda gigantesca por consumo. Há todo tipo de comprador”, explicou o amigo.
E ele estava certo. Para o sujeito que até pouco tempo tinha a bicicleta como meio de transporte, um Effa M100 representava uma mudança radical em sua vida.
Novas tentativas
A Lifan também buscou melhorar seus produtos vendidos por aqui. A Geely veio e foi embora. E a Chery… Bom, a Chery trouxe o QQ, que literalmente soltava pecinhas de acabamento. Se fosse um brinquedo seria proibido pela Abrinq, parafraseando o amigo Luiz Humberto Monteiro.
Quando a JAC entrou no mercado, ela demonstrou uma evolução sobre o que tínhamos visto. O J3 era a promessa do compacto popular com conteúdo inimaginável aos modelos nacionais.
O erro da marca foi o afã de Sérgio Habib anunciar uma fábrica. Aquilo soou como se o dragão chinês estivesse vindo cuspindo fogo e o loby da indústria foi chorar no colo do governo. O resultado foi o Inovar Auto e sua tributação draconiana, que perdurou até a virada de 2018. No entanto, o T40 é a prova de que o produto tem se qualificado.
Jogar o jogo
A Chery abraçou o programa do governo, construiu uma fábrica no interior de São Paulo e lançou o Celer. O carrinho não vingou e a marca seguiu às sombras do mercado.
No fim do ano passado, a Caoa anunciou que assumiria as operações da marca chinesa no Brasil. Para quem conseguiu transformar a Hyundai numa marca de luxo, vender chineses não seria um desafio diferente.
O Tiggo 2 marcou a reestreia da marca. Ele não traz nada que surpreenda. Pelo contrário, a versão com caixa manual tem trambulador impreciso e a inclinação da coluna A deixou seu teto baixo. E até um sujeito de 1,68 metro sente a cabeça roçando no teto.
Pouco depois, a marca lançou o Tiggo 2, com caixa CVT. É impressionante como uma caixa manual pode revelar os pontos negativos de um carro. Com o CVT, o aventureiro rodou macio, sem aquela alavanca impressiva que teima entrar numa quinta quando deve ir para a terceira.
Agora, a marca apresenta os modelos Arrizo 5 e Tiggo 5X. Esses dois carros representam aquele temor do dragão cuspindo fogo. O Arrizo 5 é um sedã que tem credenciais para ocupar espaço no segmento dominado por Virtus, City e Cobalt. Seu trunfo é o motor turbo de 150 cv, que o coloca como o mais potente da categoria.
Já o Tiggo 5X impressiona pelo nível do acabamento e pacote de equipamentos, que não lembra nada os carros chineses de outrora. É um carro sofisticado e caro para os padrões chineses: R$ 87 mil na versão de entrada e R$ 97 mil na opção topo de linha.
A dupla mostra que a indústria chinesa superou o padrão xing ling. O próximo passo é imprimir status. Funcionou muito bem com a Hyundai…
E vida que segue!
Marcelo Jabulas é Jornalista e Designer Gráfico.
Está na área desde 2003, atualmente é o editor do caderno HD Auto, do jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte. Figura presente em todos os lançamentos, salões do automóvel e eventos da indústria automobilística. Para relaxar, tem como hobby escrever para seu blog de games, o “GameCoin” (www.gamecoin.com.br).