O Chevette, a safena e os tomatinhos

O Chevette, a safena e os tomatinhos

No final dos anos 1980 a vida não andava fácil para ninguém. Miltinho e seus dois sócios tinham uma banda de baile e, quando não estavam pendurados como retirantes no insalubre cabrita (ônibus de motor dianteiro) da banda rodando pelo interior, tocavam por Belo Horizonte e entorno nas festas dos poucos endinheirados em dias de hiper inflação. E como a vida andava meio braba, o contrabaixista e o Geraldo (o tecladista) decidiram comprar um carro a meia para ratear a despesa de ir vir.
Como a banda era um trio, os dois foram perguntar ao terceiro integrante, o Marquinho, se ele topava entrar de “cotista” na aquisição da viatura. O velho batera, coçou a cabeça calva, matutou e respondeu sem titubear. “Não obrigado, não posso gastar dinheiro com carro, tô preocupado demais com minha inflamação na safena (na perna direita)”.
Os outros dois carecas olharam um para o outro, sem conseguir fazer uma correlação entre a safena inflamada e o carro, e decidiram levar a negociação em frente.
Naquela época, o velho Milteira atravessava a cidade para ir almoçar. Calafate ao Santa Efigênia e vice-versa, duas vezes ao dia. No final dos anos 80, ainda dava para rodar tudo isso em tempo hábil.
Eis que ele chegou em casa com um Chevettinho. Dourado! Na casa dele, onde não era surpresa ele aparecer com um Fusquinha aos pedaços (para quebrar o galho), o investimento no compacto da Chevrolet era algo inusitado. Ele tinha aquela grade bipartida que imitava Pontiac, rodas Cruz de Malta e fugia do “padrão”.
“Que carro é esse?”
“Um Chevette que eu e o Geraldo compramos para quando formos tocar.”
“Por quê?”
“Para economizar gasolina e, se roubar, essa porcaria não vale nada!”
“E o tio Marquinho?”
“Ele não quis participar. Disse que tá preocupado com a safena na perna direita!”
“Mas se ele pedir carona, vocês vão dar, não é?”
“Claro que não, ele chamou o Chevettinho de ‘borra bosta’, por causa da cor. E também disse que era muito feio e judiado. Ele que se vire!”
O Marquinho não disse nenhuma mentira.
No baile seguinte, foram Miltinho e o Geraldo, a bordo daquela intimidadora máquina dourada, tocar no Automóvel Clube, na Afonso Pena. Encostar o Chevettinho foi moleza. Cabia em qualquer lugar. Por outro lado, o Marquinho penava para encontrar uma vaga para sua D20.
Depois de quase perder o horário, ele chegou irritado. Não pela demora em conseguir encostar a caminhonete, mas pelo fato de que o Chevettinho já tinha dado certo. Dali em diante, tanto Miltinho, quanto o Geraldo, debulhavam elogios àquele automóvel que parecia ter sido confeccionado à mão pelos deuses do Olimpo. “Como é prático!” “Não bebe!” Melhor negócio!”, dentre outros derretimentos e elogios só para provocar.
Na verdade, o Chevette era uma porcaria, com interior todo danificado, estofamento rasgado, como se tivesse sido palco de uma briga de gatos. E, para piorar, exalava gasolina. Mas, sua função era poupar o carro dos sócios e ratear o combustível.
Nisso, o Marquinho já tinha se arrependido de não ter entrado naquele seleto clube de benefícios. No dia seguinte, ele chegou com uma sacola de tomatinhos (daqueles miudinhos) de sua horta. Ele tinha o hábito de cozinhar, pescar e cultivar uma horta, onde o lixo orgânico da cozinha servia de adubo.
“Trouxe para vocês, a horta está cheia! Experimentem! É uma delícia! Mas, será que vocês poderiam me dar uma carona? Vim sem carro porque minha perna está doendo muito. E você sabe como aquela caminhonete é dura!”
“Hoje pode, afinal, você trouxe o tomatinho!”, disse o Miltinho.
No dia seguinte, mais tomates e uma nova carona. E a semana foi passando com uma baldiação no Santa Tereza, mediante uma propina em tomatinhos. Miltinho e o Geraldo já tinham sacado que o Marquinho já se sentia parte da tripulação do Chevette.
No sábado, tinha baile.
Ao chegar em casa, Marquinho, sem titubear, pergunta, com naturalidade: “Então, é isso né gente! Amanhã vocês me pegam que horas?”
“Como assim?”, perguntaram os dois ao mesmo tempo.
“Ué, vamos juntos no Chevettinho Borra Bosta, eu pago a gasolina!”
“Não senhor, você que se vire! Quando te oferecemos, você recusou. Agora já era!”
“Mas, que sacanagem! Vocês estão vendo meu sofrimento com a safena! Vocês sabem como é pesada a embreagem da caminhonete!”
Miltinho, olha para o colega e diz: “É Geraldo! É verdade! Debrear com a perna direita deve ser, mesmo, difícil demais!”
PS: Ao meu velho e pela memória do Geraldo e Tio Marquinho!

 

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Marcelo Iglesias Ramos é Jornalista e Designer Gráfico.

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Está na área desde 2003, atualmente é o editor do caderno HD Auto, do jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte. Figura presente em todos os lançamentos, salões do automóvel e eventos da indústria automobilística. Para relaxar, tem como hobby escrever para seu blog de games, o “GameCoin” (www.gamecoin.com.br).

Contato: (31) 99245-0855

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Emilio Camanzi

Emilio Camanzi

Emilio Camanzi  é um jornalista experiente e formador de opinião, com mais de 56 anos de trabalho dedicados a área automobilística. Seu trabalho sempre foi norteado pela busca da seriedade e credibilidade da informação. Constrói suas matérias de forma técnica, imparcial e independente, com uma linguagem de fácil compreensão. https://www.instagram.com/emiliocamanzi/ 🙋 PARCERIAS: comercial@carroscomcamanzi.com.br