Gurgel, o gênio que calculava dormindo

Gurgel, o gênio que calculava dormindo

O homem de cabelos brancos, com um leve cacoete no lábio inferior, sentado no corredor do avião, ao lado da filha, disse à ela: o motor do lado externo vai explodir. A filha retrucou, querendo saber como ele sabia daquilo. Não respondeu, apenas apertou o botão para chamar a comissária. Quando ela chegou, com o avião ainda esperando sua vez de ir para a pista, em voz muito baixa disse:

– Vá até a cabine e diga ao comandante que aquele motor ali vai explodir. Tenho certeza que vai.

Sem falar nada, a comissária retirou-se rapidamente e foi em direção à cabine. Voltou poucos minutos depois com o recado do comandante de que estava tudo em ordem e que ele não deveria se preocupar,

Com autorização da torre, o avião começou a taxiar.

E o motor apontado pelo homem de cabelos brancos explodiu. Ele comentou com a filha. Ainda bem que não estávamos em voo, não é?

Esse episódio me foi contado pela filha mais velha daquele homem de cabelos brancos, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, durante um evento em São Paulo, depois que seu pai já havia falecido.

Só mesmo um gênio como o Gurgel para se antecipar ao acontecido, apenas observando a situação do motor.

Mas ele também se antecipou no que diz respeito ao carro elétrico brasileiro, quando fabricou, em série, o Itaipu E-400, em 1981. O alto custo e a vida curta das baterias, inviabilizou o projeto. Mas isso não tira de Gurgel o mérito de antecipar-se ao futuro, apesar de muitos o criticarem por outros projetos (mirabolantes, segundo os críticos) que acabaram por levar sua empresa à falência.

Um desses projetos foi o de uma cidade autônoma, que nunca saiu da prancheta, mas era uma ideia que mostrava uma construção circular, rodeada por um cinturão verde e residências com dois pavimentos e as garagens nos fundos. Dentro do círculo, duas linhas de VLT que faziam a ligação entre as casas e os centros comerciais. Era um projeto que até mesmo Gurgel disse para mim: “esse é mais difícil que o carro elétrico. Quase impossível.”

Mas o que ele sonhava mesmo era com uma linha de veículos leves. Começou com o Gurgel 1200, com quatro versões, Augusta, Ipanema e Xavante, exibidas no estande da Macan, a empresa do engenheiro; e Enseada, que foi exposta no estande da Volkswagen, com a qual Gurgel havia assinado um contrato de fornecimento de motores.

Posteriormente, ele absorveu o nome de Gurgel Veículos Ltda e conseguiu sucesso com vários modelos, entre eles o BR 800, o Carajás, “uma prévia dos utilitários esportivos” conforme afirma o jornalista Gabriel Marazzi, que já andava de Gurgel, quando pequeno, na época em que o “Gênio” produzia veículos para crianças.

 

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Por que chamo Gurgel de gênio?

Quando labutava em O Globo (Sucursal de São Paulo, comandada pelo brilhante Wilson Gomes) cobria a indústria automobilística, com a liderança da Volkswagen, presidida por Wolfgang Sauer. Fui várias vezes a São Carlos visitar a fábrica da Gurgel. Em uma delas, fui almoçar na casa do casal Gurgel.

Sem falar de negócios, Gurgel mostrou-se chateado com seu vizinho, um ex-produtor de verduras, legumes e outros alimentos, que arrancou tudo para plantar cana-de-açúcar.

– Agora ele vai ao Ceasa (hoje Ceagesp) comprar o que vai comer. E nós não temos mais coisas frescas na nossa mesa. Essa observação demonstra o quanto Gurgel era contra o Proálcool.

Mas a minha definição de Gênio veio de uma conversa que tive com a esposa de Gurgel, Carolina, quando lhe perguntei como era o dia-a-dia do seu marido.

– Bem, ele pensa o dia inteiro, faz cálculos, desenhos e tudo quanto possa ser transformado em um veículo.

Às vezes – afirmou ela – quando está dormindo, eu o ouço fazendo cálculos.

Grande parte da Imprensa o admirava – nem todos, claro, pois a unanimidade não existe – e vários jornalistas que cobriam o setor, adquiriram, de forma simbólica, ações da Gurgel Veículos, em uma demonstração de confiança nos projetos do “gênio”, que faleceu em 2009 com problemas de saúde.

 

O que a Gurgel produziu?

Nos seus 25 anos de existência, a Gurgel produziu o  Ipanema ( picape e QT) 1969-1971, Bugato 1970-1971, Xavante XT 1971-1975, Xavante XTR 1971-1975, Xavante XTC 1974-1975, Xavante X-10 1975-1977, X-20 1976-1979, X-12 1975-1988, Tocantins 1988-1991, X-15 1979-1982, G-15 1979-1982, Itaipu 1975, Itaipu E-150, Itaipu E-400 1981-1982, Itaipu E-500 1981-1982, G-800 1982-1988, XEF 1983-1986, Carajás 1984-1989, BR-800 1988-1991, Motomachine 1990-1992, Supermini 1992-1995, Protótipos, BR-Van, Cena (ou 280), Delta, Motofour, SuperCross, Transa, TU, Gurgel GTA.

Destaque para o XEF, tentativa de criar uma versão “executiva” dos modelos da Gurgel, inspirado em uma suposta mini-Mercedes.

 

 

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chicolelis

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chicolelis começou no jornalismo em 1960, no jornal A Tribuna (Santos/SP), passou pela Ford, onde foi aluno do mestre Secco, foi para a Goodyear, depois para O Globo (Sucursal de São Paulo) e dali para GM, onde ficou por 18 anos. Em seguida, fez consultoria para a Portugal Telecom e depois editor do Caderno de Veículos do Diário do Comércio (SP) 🙋 PARCERIAS: comercial@carroscomcamanzi.com.br