Fim da linha

Fim da linha

Cerol e linha chilena, usados em pipas, causam lesões e até mortes entre motociclistas e ciclistas.

Há algum tempo atrás eu estava viajando para o litoral de São Paulo pela rodovia dos Imigrantes. Ainda no trecho urbano percebi que o céu estava coalhado de pipas e já fiquei esperto. Pouco depois vi uma moto custom parada no acostamento e o motociclista gesticulando como se estivesse enroscado em alguma coisa: eram alguns metros de linha de pipa… Com cerol! Felizmente atingiu só a moto.

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Pipa, papagaio, pandorga, quadrado, arraia seja lá qual for o nome, é um dos brinquedos mais antigos da humanidade. Assim como a bola, é uma das poucas brincadeiras acessíveis a pessoas de qualquer estrato social, cultura, idioma, nacionalidade, etc. A pipa – ou “o” pipa, cada região usa um gênero diferente – está presente em todos os continentes. Assim como é divertido apenas soltar a pipa no ar e manter o controle, também é divertido competir para ver quem laça a pipa do outro. Ou, como dizem em alguns idiomas, quem caça a pipa. Competição que deu origem ao belíssimo romance “O Caçador de Pipas”, de Khaled Rosseini.

Só que existe outra modalidade de caça: o corte da linha. Um caçador simplesmente corta a linha do outro para ver a pipa adversária entrar em uma triste espiral e chegar ao solo. Nessa tarefa de cortar a linha é que mora o perigo. Para melhorar a eficiência do corte usa-se vidro moído misturado com cola branca, chamado de cerol. Essa pasta forma um poderoso cortante capaz até de serrar madeira, plástico e alumínio. Imagine o que faz na carne!

Lembro-me da minha infância (lá nos anos 60), que já se usava cerol na linha e para os soltadores de pipa não se cortarem colocavam o dedo dentro de um vidro de remédio para estômago. Era um tubo com a medida certa para um dedo indicador.

Mas nem tudo é tão ruim que não possa piorar. Depois do cerol foi a vez da “linha chilena”, feita com cavaco de metal, também misturado com cola, mas com um poder 100 vezes maior de corte do que o cerol. Um teste mostrou que a linha chilena representa cerca de 30 vezes a passagem de uma serra tico-tico. Contra esse material não há nada capaz de oferecer proteção, nem uma armadura medieval.

Moto com antena na rodovia. (foto: Vespaparazzi)

É legal?

Existem moto clubes defendendo a simples proibição das pipas. Já que motociclista é uma das categorias mais injustiçadas quando se trata de leis de trânsito, a proposta é nada mais do que devolver na mesma moeda. Por exemplo, se a solução para acabar com os assaltos nas saídas de banco é proibir o transporte de passageiro em motos, colocando todos os motociclistas na condição de bandidos, poder-se-ia proibir soltar pipa em vias públicas colocando todos na condição de assassinos sanguinários.

Nem uma coisa nem outra. Motociclistas não são bandidos e quem solta pipa não é assassino. Porém, da mesma forma que a moto é usada como ferramenta de ações criminosas, as pipas estão matando. Como equacionar isso? Só existe uma resposta aceitável: educação + fiscalização. Qualquer pessoa entra nos sites de compras livres e acha cerol ou linha chilena pra vender. Como essas pessoas não são presas?

O Estado adotou a solução mais fácil, seguindo a elementar cartilha fascista: obrigou os motofretistas a usarem uma antena corta-linha em suas motos. Sim, porque dessa forma não tem obrigação de fiscalizar quem causa o acidente, mas somente as vítimas. E ainda tira das costas uma possível responsabilidade civil, porque caso algum motociclista morra degolado por uma linha com cerol o Estado pode justificar que criou uma lei obrigando o uso da antena corta-linha.

É o Brasil sendo o Lisarb de sempre, onde tudo é ao contrário: a vítima fica com o ônus da proteção.

Naquele episódio descrito no primeiro parágrafo, havia um carro da policia rodoviária a 50 metros de distância. Cheio de paciência e cidadania parei e avisei aos policiais que tinha muita gente soltando pipa perto da estrada. Ele se limitou a informar que isso era um “problema da Guarda Civil Metropolitana”. Viu como é simples resolver os problemas? Transfere para outros! É muito difícil colocar a Guarda Civil Metropolitana, a policia militar ou a rodoviária para fiscalizar essa atividade próxima das estradas? Imagine, quanta ingenuidade a minha, eles estão ocupados multando…

Só um alerta: quem solta pipa não é criança, como se acredita inocentemente ou como no belo romance citado, mas adultos. São dados da AES-Eletropaulo que sofre com os acidentes com linha de pipa na rede elétrica. Segundo pesquisa da empresa, 60% das vítimas desses acidentes têm entre 18 e 25 anos.

Não existem dados oficiais, mas sabe-se que pelo menos 100 motociclistas são atingidos por linhas de pipa todos os anos e 25 deles morrem. É pouco sim, estatisticamente falando é uma probabilidade muito baixa, mas quando acontece com alguém é 100% dele que morre. É 100% de um filho que vai embora. É 100% de um pai que é enterrado. Cansei de ser estatística.

Como eu já peguei linha de pipa cinco vezes (isso mesmo, cinco!!!), mas nenhuma com gravidade, aqui vão alguns conselhos:

– Coloque a antena em sua moto. Sim, eu sei, é horrível, te deixa parecido com motoboy, mas é a sua vida e não existe nada mais fora de moda do que morrer degolado no século 21.

– Claro, nem todas as motos aceitam uma antena, por isso também se pode recorrer ao para-brisa, especialmente nas motos custom ou big-trail. Além de evitar a linha ajuda a manter a audição por mais tempo porque desvia o vento (e o barulho) da cabeça.

– OK, você não quer nem antena nem para-brisa, então existe ainda outra solução: os protetores de pescoço. Feitos de neoprene com vários cabos de aço por dentro, ele protege se a linha chegar na região do pescoço.

O protetor de pescoço tem cabos de aço por dentro. (foto divulgação)

– Fique especialmente esperto nos bairros periféricos. Para saber se uma região é mais “pipável” olhe os fios da rede elétrica. Se estiver cheio de rabiolas de pipa fique atento.

– Toda estrada perto de áreas urbanas são locais perfeitos para soltar pipas porque tem menos fios e bastante área livre. Até os canteiros centrais são usados livremente, bem na frente dos policiais rodoviários que, como já disseram, não podem (e não querem) fazer nada. Aliás, ninguém pode.

– E fique mais esperto ainda em fins de semana e época de férias, quando a criançada está toda na rua!

– Se estiver sem antena, nem protetor de pescoço e perceber que o céu está cheio de pipas, fique próximo de um veículo alto (ônibus ou caminhão baú) para usá-lo como escudo. Mas não tão próximo… Mantenha uns dois segundos de distância.

– Fique de olho se seus filhos, sobrinhos, vizinhos soltam pipas e faça sua parte: explique o perigo do uso de cerol. Muita criança também se corta gravemente apenas manipulando o material. E denuncie se descobrir alguém comercializando esse material.

– Se não acredita em nada disso que acabou de ler, confira aqui: https://globoplay.globo.com/v/4323764/

Com protetor de pescoço e capacete integral a proteção é maior: (foto Tite)

 

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Tite Simões é Jornalista, instrutor de pilotagem de moto, especialista em segurança veicular.

Trabalha na  Oficina 259 Editora e Comunicação desde 1970 e é dono da SpeedMaster Superior School of Velocity

Contato: info@abtrans.com.br

 

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Emilio Camanzi

Emilio Camanzi

Emilio Camanzi  é um jornalista experiente e formador de opinião, com mais de 56 anos de trabalho dedicados a área automobilística. Seu trabalho sempre foi norteado pela busca da seriedade e credibilidade da informação. Constrói suas matérias de forma técnica, imparcial e independente, com uma linguagem de fácil compreensão. https://www.instagram.com/emiliocamanzi/ 🙋 PARCERIAS: comercial@carroscomcamanzi.com.br