Durante várias décadas, o Fusca certamente é o carro que passou por todos os tipos de transformações por seus proprietários. Além de confiável e durável, sempre foi o carro que seu dono acabava personalizando: acabamento, design e, principalmente, mecânica. Quem é que, nos seus tempos de jovem, não teve um Fusca e colocou nele rodas de tala larga com pneus maiores, plásticos de formato “bolha” nas janelas traseira e até abrir o teto para criar uma entrada solar nos modelos que não dispunham desse equipamento originalmente?
E nas alterações mecânicas, suspensões que poderiam ser reguladas na altura (mais baixo e estável ou mais altos para atravessar obstáculos), motores com cilindrada aumentada que poderiam chegar até ao exagero de 2300 ou 2500 cm³ ao invés dos 1300, 1500 ou 1600 originais, e por aí vai. O besouro da VW sempre foi um experimento da criatividade dos jovens não só brasileiros, mas pelo mundo todo.
Eu mesmo tive um Fuscão 1972 que logo depois desmontei seu motor e coloquei um kit 1600, juntamente com a dupla carburação. O objetivo, claro, era melhorar o desempenho. Quem pensa que eu parei por aí, se enganou, afinal troquei esse 72 por outro 76, mas agora 1600 de fábrica (com motor do Brasília). Mas eu acabei, mesmo assim, trocando seus carburadores por um par de Weber 40, preparei seu cabeçote e adicionei um comando de válvulas mais brabo. Coisas de jovens que procuram mais desempenho e, por essas e outras, ampliam seus conhecimentos mecânicos.
Para quem pensa que nos dias de hoje esses jovens deixaram de existir, um grande engano. Rafael Mathias, hoje com 34 anos e pai de duas filhas, assim como eu no passado, continua apaixonado pelos Fusca. Por falta de um, ele tem dois: um 1969 e outro 1973, que foram tão personalizados que se transformaram em duas joias raras.
Fusca 1969: muito vigor e estilo
O primeiro, 69 e pintado na cor Azul Cobalto (original do catálogo daquele ano), tem mais cara de original, mas é só na aparência mesmo. Rafa, como é chamado seu dono, comprou a raridade do segundo proprietário (ele é o terceiro), em perfeito estado de conservação. Mas, assim que o carro chegou nas suas mãos, começaram as personalizações, como os jovens já fazem há décadas. O Fusquinha ganhou tudo do bom e do melhor.
Nas suspensões dianteiras, dois reguladores de altura, amortecedores especiais e quadro totalmente refeito. Atrás, uma nova altura, regulando o carro à uma performance diferenciada. As quatro rodas são importadas, feitas pela americana Empi, modelo Torqstar, calçadas com pneus da japonesa Momo (mais largos na traseira do que na dianteira). Sua transmissão foi substituída pela caixa do Fusca Itamar, com relação de diferencial mais longa, mesma do SP2, da mesma forma que a alavanca deu lugar à outra Empi.
Seu motor, a álcool, possui cabeçotes especialmente trabalhados, tanto no formato das câmaras de combustão quanto nos dutos de admissão e escape. Na realidade, seu motor original era o franzino 1300, trocado por esse 1600 preparado. Rafael comprou desde bloco novo, até componentes internos importados (comando de válvulas, tuchos, varetas, balanceiros e por aí vai). E não para por aí, já que esse VW 1969 nem sonhava com injeção eletrônica quando novo, equipamento que recebeu recentemente.
Pois não é que o danado, depois de velho, se tornou injetado? Tem uma injeção eletrônica programável Injepro, com dois corpos com quatro borboletas de 40 mm, o que garante ao motor também um sistema de ignição monitorado pela mesma central eletrônica. Com toda essa parafernália, o Fusquinha foi ao dinamômetro: após diversos acertos na mistura ar/combustível e ponto de ignição, chegou aos excelentes 108 cv de potência máxima com cerca de 86 cv líquidos nas rodas. O torque hoje ronda os 14 mkgf.
Para os menos 40 cv líquidos originais, um tremendo salto. Dentro desse processo de personalização, muitos equipamentos e acessórios especiais: freios a disco dianteiros Power Brakes (os traseiros são originais), volante Flat4 de madeira, maçanetas e manivelas de vidro Empi, lentes e lanterna de neblina Empi, um bom sistema de som com rádio Pioneer e alto-falantes Focal (subwoofer e amplificador também completam o pacote), bancos San Marino com estilo mais esportivo, conta-giros Autometer, pedal do acelerador estilo roller (também Empi) etc.
Rafael destaca, como um dos lados mais bacanas desse seu Fusca 1969, o sistema de escapamento completo. Importado dos EUA, é totalmente confeccionado em aço inox, inclusive o silencioso, e foi feito de maneira que melhore o fluxo dos gases e, consequentemente, aumento na performance.
Fusca 1973: prontinho para as pistas
No outro, um 1300 73 Amarelo Caju com pintura original de fábrica (são apenas alguns retoques e polimentos), a pegada é de carro de pista. Em que pese o fato de ter tido pouquíssimos proprietários e ter sido adquirido totalmente original, o Fusquinha amarelo foi depenado e ficou quase pelado, sem forração, bancos ou quaisquer outros equipamentos de luxo ou refino. Seu interior foi pintado de preto brilhante, para contrastar com o exterior.
Saíram de cena os vidros, todos originais, que deram lugar as janelas Lexan (parente do acrílico), mais leves e frágeis, até no parabrisas. Por dentro, está apenas o banco do motorista, único, em alumínio aliviado através de furos, cinto de segurança de competição com cinco pontos, alavanca de marchas Empi, volante Lotse Drag (para carros de corrida), pedaleira e freio de mão. No lugar da instrumentação, uma pequena tela touchscreen que comanda todo o motor (injeção e ignição), é responsável pela partida, e informa o motorista com relação à velocidade, rotação, níveis de óleo, combustível e temperatura do carro.
Por fora, os faróis e lanternas do Fusquinha endiabrado estão lá só para enfeite, já que não funcionam e podem ser substituídos facilmente por tampas de fibra de carbono para aliviar peso, assim como os parachoques tem desmontagem facilitada (o chamado “kit drag”). Suas rodas são pretas foscas e com tala estreita na dianteira para reduzir atrito nas acelerações, mas conservam o desenho original do besouro da VW, enquanto seus pneus, japoneses, tem até construção semi-slick na traseira para melhorar a aderência nas arrancadas.
A melhor parte fica, literalmente, no final, tanto do carro quanto da sua descrição. Ele tem um poderoso motor 2.3 de saudáveis 180 cv (aproximadamente). Quase tudo nele veio do exterior, para variar dos Estados Unidos, onde mexem bastante nos Fusca. O bloco do propulsor foi especialmente concebido para essa cilindrada (2.276 cm³), com kit de cilindros e pistões nacional, produzidos no Brasil para exportação.
Seus cabeçotes idem, e partem, acreditem, do modelo original, mas tem refeitos os desenhos das câmaras de combustão, além dos dutos de admissão e escape, de acordo com os respectivos coletores.
Lá dentro do 2.3, um virabrequim forjado que proporciona um curso bem maior para os pistões, enquanto as bielas, também forjadas, são adequadas à essa configuração inédita do novo motor. Comando de válvulas, tuchos, varetas e balanceiros, são todos americanos e oriundos dos kits para carros de arrancada. E até as engrenagens que acionam o comando de válvulas pelo virabrequim são de dentes retos para aumentar a resistência e minimizar o esforço no bloco. Mas, claro, isso custa um bom aumento no ruído.
Obviamente, um motorzão desses gera muito calor, por isso existe um enorme radiador externo do óleo, posicionado na parte superior do câmbio, além do interno de alumínio que garante o arrefecimento do lubrificante. Uma parafernália que faz inveja pra muita máquina moderna.
Mas essa cavalaria toda precisa ser alimentada, e aí entra o sistema de injeção eletrônica FuelTech, fabricado no Brasil e de última geração, que permite programar externamente a mistura ar/combustível para todos os regimes de rotação e, simultaneamente, controlar a centelha da ignição com seu avanço de acordo com a carga no acelerador. O corpo de borboletas, por onde o motor respira, é de 45 mm, sem a restrição dos difusores, e por isso o 2.3 tem ar livre até 6 ou 7 mil rpm. Um assombro!
Faltou falar do câmbio, mas este é o conhecido manual de 4 marchas com relação do diferencial 8:31, o mesmo do Fusca 1969 que falei antes, SP2 e modelo Itamar. Já imaginaram um carro destes, que pesa menos de 800 kg, impulsionado por 180 cv e mais de 20 mkgf de torque, catapultando essa carroceria aliviada de quilos extras? É como um soco nas costas e um ponta-pé na bunda ao mesmo tempo, te jogando para frente. Essa é a aceleração desse Fusquinha de arrancada, que, na realidade, nunca participou de nenhuma competição.
Brinquedos caros
Rafael Mathias, dono dos dois bólidos, me confidenciou que, apesar de parecerem brinquedos de gente grande, essas duas faces do Fusca custam caro. E bem caro! Até pelo elevado número de peças importadas e feitas sob medida que compõe as duas receitas. Acreditem, mas Rafa gastou ao redor dos R$100 mil em cada um de seus Fusca. Ainda assim, ele crê que, no momento de uma venda, não conseguiria mais do que R$65 mil por cada um. Quanto eles rodaram? O 1969, 1600, não bateu nem os 1000 km depois das preparações, enquanto o 1973 2300 não chegou nem perto dos 200 km.
São dois xodós feitos com muito amor e carinho, mas que, segundo o Rafa, podem passar para novos proprietários, dependendo da proposta. A intenção é sempre iniciar um novo brinquedo no futuro (ele já tem alguns em mente). Aí que mora o desafio e a real diversão que é montar um carro mexido: preparar, adaptar e envenenar. Em seguida, quando prontos, resta um pouco de curtição ao volante e, depois, a venda. E o sonho da nova aventura…
Fotos: Lucca Mendonça