Diversas marcas passaram a apostar nessa tecnologia como alternativa aos elétricos – e há uma boa razão para isso
Parece que 2021 tornou-se o ano em que as montadoras acordaram para o hidrogênio. Não que elas nunca tivessem investido nesse gás para mover seus veículos antes, mas chama atenção como tantas marcas anunciaram ao mesmo tempo suas apostas nessa tecnologia.
Muita gente acha que isso é tão futurista que parece até coisa dos Jetsons, porém é mais simples do que parece. Na prática, um carro a hidrogênio se comporta como um carro elétrico. Não emite gases poluentes, não faz barulho e é movido por um motor elétrico. A diferença está em como esse motor é alimentado.
No automóvel elétrico tradicional, chamado pela indústria de BEV (battery electric vehicle ou veículo elétrico a bateria), a eletricidade fica estocada em um grande conjunto de baterias de lítio. No automóvel a hidrogênio, denominado FCEV (fuel cell electric vehicle ou veículo elétrico a célula de combustível), a energia é gerada no próprio carro.
Do escapamento, só sai água
Funciona assim: o FCEV tem um ou mais tanques de hidrogênio pressurizado, que é injetado na célula de combustível. Dentro dela, o gás se combina ao oxigênio presente no ar e, por meio de uma reação química, produz a tão desejada eletricidade. A única coisa que sai do escapamento é água ou vapor d’água. Também não precisa se preocupar com explosões, pois esses veículos são tão seguros quanto carros com tanque de gasolina e, se houver vazamento, o gás se dispersa na atmosfera.
Esse sistema oferece duas grandes vantagens sobre o carro elétrico. O abastecimento demora de 3 a 5 minutos, o mesmo tempo que leva para encher um tanque de combustível. Muito mais rápido do que esperar a recarga da bateria, que leva em média de 40 minutos a várias horas, dependendo do tipo de veículo e do carregador.
Outro benefício é a autonomia real, que na média varia de 500 a 600 km, distante dos 300 a 400 km das baterias, além de não ser afetado pelas condições climáticas – temperaturas muito altas ou muito baixas podem reduzir a capacidade da bateria. Claro que o hidrogênio tem seus problemas, e o maior deles é a rede de abastecimento, quase inexistente.
Foi de olho nisso que a Renault apresentou na semana passada, por meio da sua joint venture Hyvia, uma van Master acompanhada de uma estação que produz o próprio hidrogênio a partir da eletrólise da água. Prevista para chegar às ruas da Europa no ano que vem, ela é apenas o primeiro de três modelos que usarão a mesma tecnologia.
Alguns meses antes, Peugeot, Citroën e Opel (todas marcas do grupo Stellantis) já haviam seguido pelo mesmo caminho ao prometer que vão colocar no mercado europeu até o fim deste ano suas versões de van a hidrogênio.
Ideal para transporte em longas distâncias
O curioso que é tanto Renault quanto Stellantis vão oferecer modelos que têm opção BEV e FCEV, sendo que a primeira versão vai se destinar ao uso urbano, devido à menor autonomia e maior quantidade de estações de recarga em regiões centrais, e a segunda será mais indicada ao transporte de cargas em longas distâncias.
É natural que os fabricantes estejam preferindo concentrar os lançamentos de modelos a hidrogênio em veículos comerciais, pois é mais fácil para empresas arcarem com os custos de uma estação de abastecimento ou ajudar a desenvolver uma rede de distribuição tão específica.
Isso não quer dizer, no entanto, que não haja espaço para os automóveis. A Hyundai lançou o Nexo em 2018 e a Toyota oferece desde 2014 o Mirai, que neste ano bateu o recorde de distância percorrida por um modelo desse tipo: ele rodou 1.359,9 km com uma única carga de 5,65 kg de hidrogênio.
Ambas logo terão a companhia da BMW, que já está na fase de testes de rodagem com o X5 em versão FCEV, previsto para estar à venda na Europa até o fim de 2022.
Parte desse programa está sendo custeado pelo governo da Alemanha, que anunciou em maio que investirá 8 bilhões de euros para financiar projetos de larga escala que utilizem o hidrogênio como alternativa aos combustíveis fósseis – o hidrogênio geralmente é extraído da água por meio da eletrólise.
É de olho nesses recursos que a Audi está reunindo um grupo de 100 engenheiros para estudar a tecnologia de célula de combustível, embora a direção do Grupo Volkswagen, que é dono da Audi, já tenha afirmado que o hidrogênio não teria futuro na indústria automotiva.
Se essa tecnologia parece mais distante para o segmento de automóveis, que ao que tudo indica será dominado pelos BEVs, os analistas da indústria não têm dúvidas que os FCEVs crescerão muito entre os veículos comerciais, especialmente os pesados e extrapesados.
Futuro promissor entre os caminhões
Com Europa e EUA exigindo o fim dos motores a combustão a favor de uma mobilidade de emissão zero, os caminhões elétricos dificilmente terão um futuro promissor se tiverem que carregar para lá e para cá quantidades imensamente pesadas de bateria para dar conta não somente de transportar a carga, mas também de cruzar longas distâncias nas estradas.
É nesse cenário que o hidrogênio começa a fazer sentido. Bastariam alguns poucos postos de abastecimento ao longo das principais rotas rodoviárias para resolver o problema. Dependendo do itinerário e do número de tanques, seria suficiente uma ou duas bombas nos pontos de saída e chegada, já que um único local de abastecimento é suficiente para encher cerca de 12 veículos a hidrogênio em uma hora, contra apenas um ou dois veículos elétricos a bateria.
Só para ter ideia da quantidade monumental de baterias necessárias num caminhão elétrico, saiba que um automóvel como o Tesla Model 3 precisa de uma bateria de 480 kg para dar conta do recado, enquanto um Toyota Mirai carrega apenas 88 kg com seus tanques de hidrogênio cheios. Além disso, ao consumir o hidrogênio o veículo FCEV vai ficando mais leve, o que não ocorre com um BEV.
Assim, começa a fazer sentido fabricantes de caminhões como Volvo e Mercedes-Benz já estarem desenvolvendo células de combustível para seus veículos pesados. Mas nessa área a Hyundai é a que está mais adiantada. Ela já oferece na Europa o Xcient, um caminhão equipado com sete tanques que somam 31 kg de hidrogênio, que são capazes de transportar 18 toneladas por 400 km. E vai entrar em testes nos Estados Unidos uma versão que alcançará até 800 km.
Aviação e navegação também vão entrar nessa
A marca coreana está investindo pesado nessa área. Em setembro, ela revelou seu projeto Visão Hidrogênio 2040 e ainda apresentou três protótipos: um novo caminhão, um esportivo com 650 cv de potência e o que ela chama de Trailer Drone, um veículo autônomo que levará seu frete pelas rodovias sem precisar de motorista por distâncias de até 1.000 km e ainda descarregará sozinho a carga no ponto de chegada.
É justamente a capacidade de abastecer rápido e de se livrar de um enorme e pesado conjunto de baterias que deve abrir as portas do transporte aéreo e marítimo ao hidrogênio.
Forçada cada vez mais a reduzir os níveis de emissões, a Airbus já planeja lançar até 2035 três modelos de aeronave a hidrogênio. A tecnologia é perfeita para tornar a aviação mais sustentável, porque o hidrogênio oferece a maior concentração de energia por peso: tem três vezes mais energia que a mesma massa de combustível líquido e mais de cem vezes que as baterias de lítio.
A mesma lógica se aplica aos navios. Dá para imaginar o peso e o tamanho das baterias e quanto tempo levaria para carregá-las nos grandes cargueiros que têm tanques entre 9,5 milhões e 13,5 milhões de litros para alimentar seus motores a diesel?
Fotos: divulgação
Consultor do mercado automotivo e jornalista especializado na área há 27 anos, Zeca Chaves foi editor do caderno Veículos da Folha de S. Paulo e trabalhou por 19 anos na revista Quatro Rodas, onde foi redator-chefe. Também é produtor de conteúdo digital no Instagram @zeca_chaves
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