O número de carros que nosso saudoso e querido amigo Josias Silveira teve ao longo de sua vida é algo quase que impossível de ser contabilizado. Nem a própria família é capaz de saber. Pelo o que eu sei e ele muito me contava, é muito mais fácil lembrar do que ele não teve.
A curiosidade mecânica e as características de comportamento de cada marca e modelo desde os anos 60 até 2021 faziam com que o “tio”, como Josias era carinhosamente apelidado, sempre quisesse experimentar todos, pequenos ou grandes, potentes ou raquíticos, novos ou velhos, sem exceção.
Por formação acadêmica, ele era engenheiro, mas o espírito jornalístico nunca se afastou dele, já que gostava muito de contar à todos, não só sobre os veículos, mas também sobre componentes que os compunham. Aquele jeito descontraído e as vezes até divertido dos seus textos conquistavam, seja nas suas colunas digitais ou nos textos impressos que ele tanto produziu na sua revista Oficina Mecânica, onde ele foi editor-chefe por mais de duas décadas.
Uma das verdadeiras paixões do Josias era a de encontrar carros “desmaiados”, como ele mesmo falava, ou até literalmente abandonados, comprá-los, consertar tudo que tinha de estragado, restaurar e colocar o carro pra rodar em perfeito estado novamente.
Ele próprio se intitulava “salvador de carros perdidos”. Mas, claro, esse era um hobbie dos últimos tempos, já que até meados de 2010 Josias só andava com carros bacanas e novinhos. Já teve Porsche 911, Porsche 914, Mercedes (algumas), Galaxie, LTD, Alfa Ti4, Ford Maverick SW e muito, muito mais.
Teve um período, lá em meados dos anos 80, que ele possuía mais de 14 carros em um estacionamento alugado em São Paulo, fora o que estava na sua casa ou na redação da revista. E que, independente da importância de cada um, eram tratados com o mesmo carinho: todo final de semana eles eram lavados, funcionavam e davam até uma voltinha no quarteirão.
Ultimamente, o Josias tinha uma grande paixão, que ele inclusive prometia contar essa história aos seus leitores. Infelizmente não deu tempo. O Zé, apelido criado por ele mesmo, era um Gol bolinha 1999 com o polêmico motor 1.0 16V Hitork, com quatro portas e da cor prata.
O “tio” encontrava coisas em lugares que só ele mesmo poderia contar, mas vou tentar explicar essa: O Zé estava abandonado em uma favela na periferia da Zona Leste da capital paulista. O carro não andava pois seu motor estava travado por falta de lubrificação, e o dono, um jovem de 19 ou 20 anos, não tinha grana pra arrumar. Como o próprio Josias falava: “O carro do moleque não andava, mas as rodonas enormes e o porta-malas entupido de som estavam lá”.
Depois de negociar com o jovem dono, Josias levou o Golzinho 16V “desmaiado” por um precinho bem camarada. O Zé, claro, foi embora de lá de guincho, mas com a promessa de ser salvo pelo “tio”. Da ZL de São Paulo, o carro seguiu pra Tatuí, onde o Josias tinha um mecânico de muitos anos de confiança, o Renato, que inclusive trabalhou montando motores de protótipos para a engenharia da VW nos anos 80. Um cara muito competente, que agora tinha a missão de cuidar daquele Golzinho com motor travado.
Examinando seu novo paciente, o mecânico Renato diagnosticou que o carro tinha que ser totalmente reconstruído, começando pelo motor, claro. O propulsor 1.0 16V foi totalmente refeito, sempre com peças novas e retificadas, readquirindo o vigor dos seus 70 cv. Motor zero, embreagem tinindo, câmbio sem nenhum ruído e com engates ótimos. O Zézinho já saía da UTI, respirando sem a ajuda de aparelhos. Chegou a hora dele voltar a ser original.
As enormes rodas instaladas pelo antigo dono, de aro 17, caíram fora, dando lugar à um simpático jogo aro 14 com design da própria VW, e os freios novos garantiam a segurança. O “tio” Josias tinha até comprado uma direção hidráulica para adaptar no seu Gol 16V, que não contava com muitos luxos, mas foi outra coisa que não deu tempo de ele fazer. Maior silêncio e precisão também vieram com as novas suspensões, buchas e amortecedores. Para quem foi encontrado abandonado em uma favela, o Zé já tinha um futuro promissor.
Uma coisa que impressionava o “tio” era o baixo consumo de gasolina desse motor 1.0 16V. Na rodovia Castello Branco, onde ele sempre estava cruzando a rota Tatuí-São Paulo ou vice-versa, o Golzinho era capaz de fazer mais de 16 km/l de gasolina, segundo o Josias me contava. Um ótimo resultado pra um carro do final dos anos 90 e pouca tecnologia embarcada.
Josias costumava se orgulhar também do desempenho do carrinho depois de ser ressuscitado, contando que sempre empurrava modelos maiores com motor 1.6, 1.8 ou até 2.0 na estrada durante suas viagens. Segundo ele, o Zé era um canhão e ainda mestre na arte de economizar combustível.
Mas o carro ainda não estava totalmente pronto, mesmo depois da revisão mecânica, reparos gerais e uns retoques na lataria e pintura. Na parte interna, os bancos e laterais de portas já estavam desgastados depois de mais de 20 anos de uso, mas o amigo Josias ia fazer uma bela “restauração” interna no Golzinho em breve.
No dia anterior ao de sua partida, última vez que conversamos por telefone, ele chegou a me contar que estava cotando lugares pra consertar a tapeçaria do Zé. Era o carro que ele estava usando no seu dia-a-dia, então queria deixá-lo no melhor estado possível.
A conta fecha?
Mas, você leitor, já deve estar se perguntando: Financeiramente falando, valeu a pena comprar um carrinho barato e “desmaiado” como esse Gol e trazê-lo de volta à vida novamente? Não, não valeu a pena. Na realidade, a conta não fechava, como dizia o próprio Josias. Esse tipo de serviço tão grande só valeria a pena se ele fosse ficar com o carro pra sempre. Agora, pensar em fazer isso e depois vender o carro pra ganhar dinheiro, sem chance!
O “tio” pagou nesse Golzinho cerca de R$3 mil, e só de guincho para levar o carro até Tatuí foram mais R$500. No novo motor, que ele retificou completamente, gastou mais de R$6 mil, e depois veio freio, direção, suspensões, câmbio, coxinização, escapamento. Toda essa brincadeira já passava de R$10 mil, e olha que o mecânico Renato conseguia preços bem camaradas de mão-de-obra para o Josias, seu amigo de tantos anos.
Todos esses R$10 mil não incluíam rodas, pneus, funilaria, pintura e outros consertos do carro, nem a futura restauração na tapeçaria. Pronto, do jeito que o “tio” queria, esse Golzinho ia bater a facilmente marca dos R$17 mil, ainda mais com algumas pendências de documentação e transferência que o carro tinha.
Considerando o preço de um Gol 1.0 16V 4 portas 1999 no mercado, ao redor dos R$10 mil, fica fácil perceber que a salvação do Zé definitivamente não era um negócio pra se ganhar dinheiro. Claro que, nessa conta, devemos lembrar que o carro estava agora com praticamente todos os seus componentes renovados. Virou um carro novo no estado, mas velhinho na idade.
Quantos carros desses nosso saudoso Josias tinha na fila? Posso dizer que vários: Peugeot 206 1.4, Gol conversível (fora-de-série), Santa-Matilde SM 4.1, um interessante e único protótipo esportivo feito pela Rontan, e por aí vai. Todos já estavam nas mãos do “tio”, só aguardando para serem salvos. Pena que não deu tempo. Como dizia minha mãe: A gente faz um plano, mas a vida faz outro. E, infelizmente, o “tio” partiu apressado, sem avisar nada pra ninguém.
Douglas Mendonça é jornalista na área automobilística há 46 anos.
Trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e foi diretor de redação da revista Motor Show até 2016. Formado em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Engenharia Paulista (IEP).
Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e a Mil Quilômetros de Brasília em 2004.
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