Em breve, todos vão fazer revisão sem ir à oficina ou ligar o ar-condicionado do veículo de casa. Mas há novos perigos que também estão chegando…
Entenda por que isso é bom e ruim!
Já percebeu que em todo lançamento de carro fala-se cada vez mais da sua central multimídia? Os fabricantes tratam qualquer mudança no equipamento com a empolgação e o detalhismo que, 15 anos atrás, eram destinados às novidades de motor ou suspensão.
Atualmente, o tamanho da tela e o número de entradas USB falam mais ao coração do consumidor do que potência, estabilidade ou precisão da direção. Quando o Ford Evos foi apresentado na China em abril, só comentavam como o painel era uma única tela de 1,1 metro de comprimento, assim como o Land Rover Discovery seduziu a galera no Brasil por ter até nove portas USB e seis tomadas 12 volts.
É um movimento sem volta. Uma pesquisa da Anfavea mostrou que, em 2010, apenas 3% dos carros novos do mercado brasileiro eram equipados com central multimídia. Nove anos depois, o índice subiu para 40%. O mesmo ocorreu com a câmera de ré: a participação cresceu de 2% para 36%.
É mais do que natural que nossos veículos sejam cada vez mais parecidos com nossos celulares, por duas razões. Primeiro, porque quase todo mundo tem um aparelhinho desses no bolso e é extremamente dependente dele. Portanto, quanto maior a ligação do automóvel com o celular, maior a satisfação do motorista com aquele modelo.
Outra boa razão é que o avanço da tecnologia automotiva hoje se dá principalmente na arquitetura eletrônica do veículo e não mais na parte mecânica. Os microprocessadores controlam da temperatura do motor ou troca das marchas ao ajuste dos bancos ou o tempo em que os faróis permanecem acesos após o motorista travar as portas.
Mecânica muda pouco e é compartilhada
É cada vez mais raro uma montadora pensar em desenvolver um motor novo – a quase obrigatoriedade do automóvel elétrico na Europa em 2030 já fez muitas delas abandonarem essa ideia, como VW, GM e Mercedes. Hoje chassi e suspensão são compartilhados até entre empresas rivais. Assim, a eletrônica é a nova fronteira da indústria, onde quase tudo é possível. Dá para mudar cores, sons, ajustes e preferências, até dentro da mesma linha de veículos. O céu é o limite.
Você sabia que a versão barata de um modelo costuma ter os mesmos recursos eletrônicos que a opção mais cara, pois eles estão apenas desabilitados? Já era assim há uma década com o recurso “tilt down”, aquele que aponta o espelho externo para baixo ao dar a ré.
Esse admirável mundo novo da digitalização do automóvel, no entanto, abre duas portas para os consumidores ávidos por tecnologia, uma cheia de possibilidades atraentes, outra que gostaríamos que ficasse fechada.
Carro por controle remoto
Nesse processo do carro de se tornar cada vez mais um iPhone sobre rodas, a conectividade logo tornará possível que todos controlem seu veículo à distância, assim como você faz hoje para descobrir onde está seu smartphone em um mapa ou apagar todo seu conteúdo em caso de roubo.
Sistemas da GM e da Ford já oferecem no Brasil – só para falar das marcas mais populares – uma série de funcionalidades que comandam o carro de longe, pelo celular do motorista, como se fosse um controle remoto. O telefone pode travar/destravar as portas, localizar o veículo, checar o nível do tanque de combustível e até ligar o motor e ajustar o ar-condicionado antes de sair de casa.
Como nos celulares, os automóveis modernos também estão ganhando plataformas de aplicativos, como os novos sistemas da VW e da Fiat/Jeep. Pela central multimídia, já podemos pedir a entrega de comida ou verificar se há vagas em um estacionamento.
Os benefícios poderão poupar o dono de levar o carro à oficina para fazer as revisões ou checagens de rotina. Em breve, o veículo não precisará ser conectado ao scanner da oficina para fazer a atualização de um software de motor ou câmbio. Isso será feito remotamente, já que o automóvel terá acesso à internet, especialmente com a chegada do 5G.
Nos Estados Unidos, os modelos da Tesla já permitem fazer o download de atualizações dos principais sistemas do carro e até comprar upgrades de funcionalidades, igualzinho a um aplicativo de celular. Em 2015, a Volvo nos EUA já liberava o uso do Apple CarPlay no XC90 por US$ 300, enquanto a Tesla desbloqueava o modo semiautônomo Autopilot mediante pagamento de US$ 3.000.
Como os novos automóveis estão repletos de sensores, eles geram um enorme volume de dados, que no futuro serão usados para contratar novos serviços. A eletrônica veicular pode monitorar como o motorista se comporta ao volante e liberar essas informações (desde que o proprietário autorize, claro) para uma seguradora reduzir o valor da apólice, por exemplo. Aliás, isso já é feito hoje de modo indireto e bem rudimentar com aplicativos instalados no celular.
Os riscos que vêm por aí
Se por um lado esse espetáculo da conectividade vai facilitar demais a vida do motorista, por outro pode trazer riscos que não existiam na era dos automóveis analógicos. Sabe quando nosso computador resolve travar repentinamente sem motivo aparente? Prepare-se para viver situações como essas ao volante.
Quando trabalhava na revista Quatro Rodas, lembro de testar um modelo de uma marca inglesa quando a central multimídia apagou. Não seria problema se ela não fosse o único modo de regular o ar-condicionado. Tive de passar calor até que, no fim do dia, o sistema resolveu voltar a funcionar.
Em outra ocasião, um colega de redação testava um carro alemão quando ele entrou em modo de segurança e passou a rodar em baixíssima velocidade. Levou mais de uma hora até que alguém da fábrica explicasse como proceder: desligar o motor, acionar o alarme e esperar alguns minutos. Não muito diferente do que fazemos quando nosso notebook trava.
Existe ainda um outro perigo, esse mais grave, apesar de muito improvável segundo os fabricantes: o carro ser hackeado por criminosos virtuais, assim como eles fazem hoje ao invadir nosso computador ou celular para roubar senhas de banco ou números de cartão de crédito.
Em 2016, pesquisadores chineses do Keen Security Lab conseguiram acessar remotamente as portas, a central multimídia e até os freios de um Tesla Model S. E esse é só um caso entre vários envolvendo os modelos da marca, já que eles estão entre os mais avançados em conectividade do mundo.
A partir do momento em que os carros estiverem cada vez mais conectados à internet, aumenta a possibilidade de situações como essas acontecerem. E aí teremos aquela velha briga de gato e rato: montadoras atualizando constantemente seus sistemas e hackers tentando invadi-los.
Acho que nessas horas tem muito executivo de montadora com saudade do tempo em que as novidades se resumiam a um novo motor turbo ou uma suspensão independente.
Consultor do mercado automotivo e jornalista especializado na área há 27 anos, Zeca Chaves foi editor do caderno Veículos da Folha de S. Paulo e trabalhou por 19 anos na revista Quatro Rodas, onde foi redator-chefe. Também é produtor de conteúdo digital no Instagram @zeca_chaves
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