Seis notícias recentes mostram que o etanol pode se tornar a tecnologia de transição para a eletrificação no Brasil e demais mercados emergentes
Se você dissesse em 1997 que dentro de duas décadas quase todos os veículos vendidos no Brasil seriam equipados com um motor que queimasse álcool, qualquer um que conhecesse o mercado automotivo daria uma boa gargalhada e diria que você não entende nada de carro. Nada mais natural, pois na época esse tipo de motorização representava só 0,06% do mercado.
Tudo indicava que esse combustível estava destinado a desaparecer, até que veio a salvação em 2003, na forma de uma inovação técnica da Volkswagen: um automóvel que podia rodar com álcool, gasolina ou qualquer proporção dos dois, chamado Gol Total Flex. A ideia deu tão certo que a motorização flexível representa hoje 92% das vendas.
Apesar de ser considerado um orgulho nacional, a tecnologia flex tinha tudo para ser uma mera excentricidade brasileira, uma jabuticaba, como se fala das coisas que só existem por aqui. Seria apenas um regionalismo curioso, restrito a um mercado bem específico, assim como o sistema imperial de medidas, que hoje só é usado nos Estados Unidos, Libéria e Mianmar, enquanto o resto do mundo adota o sistema métrico.
Até que surgiu algo que pode mudar tudo, dando um futuro promissor ao etanol: os carros elétricos. Mas o que uma coisa tem a ver com outra? Eu explico. Como Europa, EUA e China estão abraçando os veículos movidos a eletricidade, seja por força da legislação ou estratégia de governo, a indústria automotiva está sendo obrigada a mudar. Dentro de 10 anos, a maioria dessas fábricas vão produzir só veículos elétricos e serão forçadas a abrir mão dos automóveis a combustão.
E como fica o Brasil e outros países emergentes, já que seus consumidores não têm renda suficiente para comprar veículos tão caros, seus mercados não dispõem de benefícios atraentes para incentivar a eletrificação e suas infraestruturas não oferecem condições para criar uma rede robusta de eletropostos?
HÍBRIDO FLEX E CÉLULA DE COMBUSTÍVEL
Para alguns consultores e executivos do setor, o híbrido flex pode ser a resposta a essa pergunta, pois seria a tecnologia de transição perfeita para esses países. Ele combina um motor elétrico, que ajuda a reduzir emissões e pode ser ligado na tomada nas versões plug-in, a um motor a combustão, que contorna a escassez de eletropostos e ainda dá uma sobrevida ao parque industrial existente nesses países enquanto o carro elétrico não se torna dominante. Completando essa receita há o etanol, que consegue neutralizar quase todas suas emissões, quando se considera o ciclo completo.
Um dos maiores defensores dessa solução, o presidente da Volkswagen América do Sul, Pablo Di Si, resumiu muito bem a situação para o portal Automotive Business (https://www.automotivebusiness.com.br/noticia/33384/com-etanol-volkswagen-inclui-brasil-em-seu-plano-global-de-descarbonizacao): “Sempre que se apresentam estratégias globais da companhia, só ouvimos falar de Europa, China e Estados Unidos. Como ficam então as outras regiões como Brasil ou Índia, onde não há condições nem incentivos para eletrificar a frota tão rapidamente? Nós temos essa alternativa: o etanol de cana é o combustível do futuro, com redução de emissões de CO2 até maior do que um elétrico na Europa quando medimos o ciclo completo do combustível, desde a produção até o escapamento. Isso não é mais uma jabuticaba.”
Pablo Di Si não está sozinho nessa empreitada. Muito pelo contrário: nos últimos dois meses, seis notícias mostraram que o mundo pode estar se movimentando para tornar o álcool um personagem relevante no cenário global.
A primeira iniciativa veio em meados de junho, quando a Nissan anunciou que iniciaria o desenvolvimento de um modelo comercialmente viável da sua célula de combustível a etanol. O projeto é brasileiro, mas tem a supervisão do Japão, pois a matriz tem interesse em levar esse conceito a outros mercados. A ideia é, a partir do álcool, extrair o hidrogênio que, por meio de uma reação química, vai produzir a energia que movimenta um motor elétrico.
Duas semanas depois, foi a vez da BMW Brasil, que divulgou estar trabalhando em um motor a álcool que servirá como gerador para aumentar a autonomia do seu automóvel elétrico mais barato, o i3.
Nesse mesmo dia, ganhou as manchetes a notícia de que a Índia vai permitir a produção de automóveis flex e a venda de etanol em postos de combustível – até então só se adicionava o álcool à gasolina, a fim de reduzir as emissões dos motores já existentes e reduzir sua dependência do petróleo. A informação fica mais interessante quando lembramos que o país é o sexto maior produtor do mundo, com 3,4 milhões de veículos em 2020, mas chega a 26 milhões de unidades quando se incluem motos e triciclos.
CENTRO MUNDIAL VW PARA BIOCOMBUSTÍVEIS
Apenas duas semanas depois, o grupo Volkswagen comunicou ao mundo que o Brasil seria um centro global de pesquisa para motores flex e biocombustíveis, para exportar a tecnologia a outros países emergentes, que ainda estão distantes da eletrificação. Também estão nos planos o desenvolvimento de híbridos flex e células de combustível para produzir hidrogênio a partir do etanol. Não por coincidência, a unidade da VW em São Bernardo do Campo (SP) recebeu em julho a visita do embaixador indiano no Brasil já de olho nessa tecnologia.
Não deu nem uma semana e o CEO da Toyota para a América Latina, Masahiro Inoue, confirmou que a montadora terá um híbrido compacto flex no Brasil, para fazer companhia aos híbridos maiores Corolla e Corolla Cross, este um SUV que tem sido um sucesso de exportação nos mercados sul-americanos.
E no meio disso tudo ainda há a notícia do site Autos Segredos (https://www.autossegredos.com.br/segredos/exclusivo-stellantis-produzira-motores-hibridos-e-eletricos-no-brasil/) de que o Polo Automotivo Fiat, em Betim (MG), deve começar a produzir entre 2024 e 2025 motores elétricos e híbridos flex, que vão equipar diversos modelos do grupo Stellantis, que reúne ainda Jeep, Peugeot e Citroën.
Diante disso tudo eu pergunto: é tudo uma grande coincidência ou o etanol está deixando de ser uma jabuticaba brasileira para ganhar o mundo, nem que seja pela porta dos fundos da eletrificação?
Fotos: divulgação
Consultor do mercado automotivo e jornalista especializado na área há 27 anos, Zeca Chaves foi editor do caderno Veículos da Folha de S. Paulo e trabalhou por 19 anos na revista Quatro Rodas, onde foi redator-chefe. Também é produtor de conteúdo digital no Instagram @zeca_chaves
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Ver comentários (1)
No início dos anos 2000, eu tinha um Voyage (1990) com motor alterado para 2.0 a álcool com diversos itens de "veneno", inclusive comando bravo e carburador de Opala 6 cil.. Sempre acelerando bem, o consumo ficava em torno 7,5 Km/L na cidade. Hoje tenho uma AirCross Flex 1.6 (comprei zero km) que faz 6,8 Km/L na cidade com GASOLINA. Hoje pago R$ 6,30 por litro de gasolina e pago R$ 6,30 por litro de álcool (pois já vem atochado junto com a gasolina que compro).
Álcool SIM. Extorsivo, NÃO!