Brasília: o “Zilhão” da dona Isaura

Quando eu era menino, Tio Marquinho tinha uma Volkswagen Brasília, que eu achava linda. Os anos se passaram e tomei uma certa repulsa ao hatch alemão de motor traseiro a ar. Mas confesso que a Brasília voltou a ser meu carro predileto na adolescência. E não era uma Brasília qualquer e, sim, uma verde oliva, motor 1.6000 a álcool e carburação dupla. O Zilhão era o filho do capeta, só que vestido de barbeiro.

Era a o carro de dona Isaura, avó do José, meu irmão desde berço e filho do Tio Marquinho. Por volta de 1995, quando tínhamos 16 anos, a senhorinha alta e de corpo esguio resolveu presentear o neto com aquele exemplar, que se tornou integrante da nossa turma.

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O “Zilhão” foi um prestativo professor na arte da direção e também da vida. Toda a rapaziada teve lições importantes a bordo daquele carro. Ele também representou um grito de liberdade, pois nos permitia ir a destinos impensáveis. Hoje, a moçada nem faz questão de ter carro. Inventaram algo mágico chamado Uber, que te leva a qualquer lugar, a qualquer hora, sem custar uma fortuna.  

Mas há 20 anos, ou você tinha um carro, ou encarava aventuras de buzão, que dependendo do lugar nos obrigava a retornar para casa apenas na alvorada. Admito que não era ruim, mas limitava nossas expectativas de sucesso, se é que o amigo me entende.

Como éramos de menor, o motorista da viatura era o Caverna, o único habilitado da turma. A ele eram confiadas as chaves da máquina. Toda sexta-feira, a gente se encontrava na casa do José, levantava o dinheiro para abastecer o “Zilhão” e caíamos na gandaia. Com o “Zilhão”, o bairro de Santa Tereza se expandiu por toda Belo Horizonte e adjacências.

Geralmente, a grana dava para no máximo 10 litros, mas era mais que suficiente para darmos um rolê e fazermos todas as cagadas que a juventude faz. Numa dessas borreiras, a casa caiu. Estávamos numa festinha, no Sagrada Família, quando, a certa hora, a turma foi pra rua. José andava ansioso para elevar sua perícia ao volante e resolveu dar uma voltinha.

O Caverna nada podia fazer, afinal era neto da dona do carro que reclamava as chaves. José ficou num movimento quase débil de colocar primeira, andar uns 15 metros e depois voltar de ré. Fez isso umas dez vezes.

Na última, eu resolvi abrir a porta para entrar no carro. Mas José já tinha engatado a ré e não tinha o domínio exato para frear o Zilhão. Ao ver que o poste estava chegando tentei fechar a porta, mas já era tarde. Ela foi encostar no para-lamas, para desespero do aprendiz e também do Caverna, que era o tutor legal da Brasília verde oliva.

Por conta das gororobas que misturavam vodka e suco de saquinho, me deu uma crise de gargalhadas, que deixou o José muito nervoso. Naquela noite eu vi que o José era realmente o meu melhor amigo. Se fosse outro cara, certamente teria me enchido de porrada.  

Depois de muito desespero (por parte do José) e discussão, vimos que era preciso tentar amenizar aquela lambança. Conseguimos fechar a porta da Brasília. O para-lamas ficou empenado, assim como as braçadeiras da porta. Tivemos que travar a porta, que não abria mais. Por sorte o vidro não se quebrou.

Mas como tudo sempre pode piorar, o combustível acabou. O demente do José ficou brincando de ir para frente e para trás com o carro e se esqueceu que debaixo do capô traseiro havia um motor 1.600 de carburação dupla que enxugava combustível.

Por ter sido corresponsável pelo incidente, me voluntariei para comprar o combustível. Achamos um garrafão de vinho e fomos até o posto. O problema é que como a boca do garrafão era estreita, o frentista derramou um bocado de álcool para fora do recipiente. Acredito que conseguimos salvar uns dois litros, mas era o suficiente para voltar para casa.

Chegamos em casa bem, por volta das quatro da manhã. Não havia mais ressentimentos e fomos dormir o sono dos justos, com a certeza de que vovó Isaura iria compreender. Como morava no Gameleira, do outro lado da cidade, sempre pernoitava na casa do José. Aliás, toda turma sempre ficava por lá.

Às seis horas da manhã, Tio Marquinho entra chutando a porta do quarto aos berros.

– Seus vagabundos (e outros termos menos nobres que não cabem nesse espaço, mas que envolvia nossas santas mães), que merda vocês fizeram essa noite?

– Vocês encheram a cara e acabaram com o carro! Vou devolver esse carro para sua avó, mas antes vocês terão que pagar o conserto!

Enquanto Tio Marquinho vociferava, tentávamos explicar que não havíamos bebido. O José queria ser goleiro profissional e não bebia uma gota de álcool. Os demais não tinham a mesma pretensão, mas isso não vem ao caso. 

– Como não beberam?

– E aquele garrafão de cachaça dentro do carro?

– Aquela porcaria de Brasília tá fedendo pinga como se fosse um alambique!

Não teve jeito, ele não acreditou que era combustível, mas hoje, lá do alto, ele sabe que não era cachaça!

E vida que segue!


Marcelo Jabulas é Jornalista e Designer Gráfico.

Está na área desde 2003, atualmente é o editor do caderno HD Auto, do jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte. Figura presente em todos os lançamentos, salões do automóvel e eventos da indústria automobilística. Para relaxar, tem como hobby escrever para seu blog de games, o “GameCoin” (www.gamecoin.com.br).

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