Bastidores dos carros 1000 nos anos 90: as primeiras experiências de VW Gol e Ford Escort
Há 32 anos, para ser mais exato no início de 1991, era membro da área técnica da Revista Quatro Rodas. Apesar de ser jornalista, devido a minha formação acadêmica mais técnica (era, oficialmente, técnico mecânico e estava no terceiro ano de engenharia mecânica), quando apareciam as reportagens mais voltadas ao “tecniquês”, fatalmente caíam no meu colo.
E o pior é que eu gostava de fazê-las, pelo desafio da novidade e explicar ao leitor, de forma detalhada, porque cada coisa acontecia de cada forma. Naquela época, comecinho dos anos 90, a Fiat dava de lavada na concorrência com sua novidade Uno Mille, um Uno que se diferenciava dos demais por ter motor de menos de 1 litro de cilindrada. Por isso pagava uma bagatela de impostos (20%, contra 37% dos de motor maior).
Isso acabava se refletindo no seu preço, bem mais em conta que o normal, o que atraía muito o consumidor. A grande maioria queria um carro 1000 0 km, não se preocupando muito com a performance bem limitada ou simplicidades de um popular. O que importava é que ele era barato e econômico. A Fiat, não vamos entrar aqui no mérito de como conseguiu isso, foi a primeira marca a lançar um 1.0 no Brasil: a lei de redução de impostos foi aprovada no congresso e, na mesma semana, já vendiam Uno Mille a preços bem atraentes. Coincidência…
A concorrência ficou de mãos atadas, foi um tiro de mestre da marca italiana. As outras marcas, todas pegas de surpresa, precisaram partir do zero para criarem seus 1.0. Mas, como sabemos, engenharia não se faz do dia para a noite. É preciso estudos, cálculos, pesquisas, protótipos, testes…só no final de tudo isso o carro é colocado na linha de produção. Leva tempo e dinheiro.
Na época de Quatro Rodas, queríamos mostrar, em primeira mão ao nossos leitores, que o carro 1000 era viável e que não era tão difícil assim criar um protótipo para colocar em testes. Logo de cara, partimos para criar o VW Gol com motor menor que 1 litro, afinal o hatch da Volkswagen era o carro mais vendido do mercado brasileiro.
Pegamos um Gol CL 1990, daqueles com motor 1.6 CHT Ford, cria da Autolatina (extinta fusão de VW e Ford) e logo em janeiro de 1991 apresentamos o teste do que viria a ser o primeiro protótipo do Gol 1000. Encomendamos para uma empresa de engenharia que desenvolvia conceitos técnicos, a fórmula de como deveria ser aquele Gol 1.0.
A receita veio dos primeiros motores Renault, conhecidos na época como CHT após mudanças no cabeçote feitas pela Ford, de onde o 1.6 daquele Gol CL era oriundo. A ideia não era trocar o motor do carro, mas sim reduzir sua capacidade cúbica. Utilizamos o kit cilindro/pistão/anel do motor 1.3 dos primeiros Ford Escort e Corcel, com pistões de 71,5 mm, além de um virabrequim de 62 mm de curso (o 1.6 tinha 83,5). Esse novo vira era artesanal, partindo de um tarugo de aço, e com ele o motor passou para 995 cm³. Arredondando, 1 litro.
Claro que com pistões de curso mais curto, foi preciso confeccionar quatro novas bielas para que os pistões atingissem o topo dos cilindros. E para que tivéssemos uma taxa de compressão adequada (chegamos a pífios 6:1, sem chances de funcionar bem), trocamos também o cabeçote do 1.6 pelo antigo do 1.3, com câmaras de combustão menores. Assim chegamos em 9:1, ideal para um 1.0 da época.
A alimentação também era outra, já que colocamos naquele protótipo um carburador de especificações menores, semelhante ao Weber de corpo duplo dos Uno Mille Brio. Assim configurado, esse novo propulsor foi levado ao dinamômetro para avaliar seu desempenho: teria dado tão certo assim? Logo de cara, sem muitos acertos, chegamos aos 50 cv de potência a 5.800 rpm com torque máximo de 7,8 mkgf a 3.300 rpm. Valores aquém dos mostrados pelo Fiat Mille de fábrica, mas animadores para um protótipo artesanal.
Mas precisava de mudanças no câmbio, para compensar a perda significativa do torque do 1.6, com seus 13,3 mkgf, para menos de 8 mkgf. Encurtamos as relações do câmbio de cinco marchas e até da coroa e pinhão (4.11:1 para 3,88:1, mesma relação dos VW de competição), mantendo apenas a 1ª, 2ª e 3ª marchas do Gol CL 1.6. As 4ª e 5ª, curtas, vinham dos Gol GTS e GTI.
Chegamos a levar esse carro, um Golzinho branco, para as pistas, fazendo todas as provas de teste da época, mostrando seu grande potencial. Durante o dia nas pistas, o pessoal técnico da preparadora ia fazendo alterações sutis na regulagem de carburador, ponto de ignição e por aí vai, e o carro foi ficando melhor. Lembrando que esse Gol era a gasolina.
Só para que se tenha uma ideia, obtivemos uma melhora de cerca de 20% no consumo de combustível só com os tais afinamentos no dia de testes. Estava parelho a um Uno Mille da época em gasto de gasolina, mas ainda perdia na performance: acelerava de 0 a 100 km/h em pouco mais de 20 segundos e chegava a (hoje sofríveis) 130 km/h de máxima. Para um protótipo feito numa oficina de preparação, nada oficial, bom demais.
E tanto deu certo que no final de 1992 a VW lançava oficialmente o Gol 1000, um carro tão simples e direto quanto seu nome. O nosso, que já existia dois anos antes disso, tinha resultados até superiores, como por exemplo no torque máximo: 7,8 mkgf, contra 7,3 do VW oficial.
Alguns meses depois…
Era a vez do Escort 1.0. Os concessionários da Ford não aguentavam mais perder vendas para o Fiat Uno Mille, por melhores que fossem nos argumentos de venda dos Escort L mais baratos. A Autolatina, quando questionada se não tinha planos para criar seu carro 1000 da Ford, insistia que não existia um modelo que mostrasse uma performance razoável equipado com motor 1.0: o menor motor deles era 1600 e ponto final, não queriam saber de nada abaixo disso.
Por isso, a associação de revendas Ford (Abradif) tomou o mesmo caminho da Quatro Rodas com o VW Gol meses antes: procurou um preparador e resolveu, ela mesma, fazer seu Escort 1.0. Mostrava assim que era um carro viável e possível.
Seguiram o mesmo caminho seguido no Gol: partiram de um Escort L básico, o mais leve, e, como VW e Ford tinham o mesmo 1.6 CHT, optaram também pelo kit do motor 1.3, novo virabrequim e bielas repensadas. Exatamente o mesmo caminho, mas com o charmoso diferencial de ser finalizado nas oficinas da extinta Varig. Aquele Escort 1.0 preparado, diferentemente do VW, tinha as mesmas relações de marcha do L 1.6, nada do câmbio foi mexido de início.
Era um câmbio de cinco marchas longas, mas não impediram do carro se mostrar mais do que viável e possível: eram 53,1 cv a 5.900 rpm e torque máximo de exuberantes 10,5 mkgf a 3.500 rpm. Levado também para as pistas, aquele Escort L 1.6 cinza reduzido para 997 cm³ (graças a um curso de virabrequim de 62,1 mm), conseguiu números bem interessantes, como 21 segundos no 0 a 100 km/h e máxima na casa dos 133 km/h.
O consumo apurado pela Quatro Rodas nas pistas brilhava, ficando melhor inclusive que o do Uno Mille Brio (11,88 km/l urbano, ante os 11,81 do Fiat). Foi o segundo carro mais econômico da época testado pela revista! Melhoraria substancialmente caso adotassem novas relações do câmbio, ou pelo menos o diferencial encurtado do esportivo Ford XR3.
Foi outro que veio ao mundo: na linha 1993 a Ford lançava o Escort Hobby, um Escort L com motor 1.0 e várias economias de conteúdo. Se comparado ao Escort 1.6 reduzido dos testes, o carro oficial da Ford tinha 1 cv a menos (52 no total), 7,4 mkgf (ante os 10,5 do protótipo), e era mais rápido (tanto no 0 a 100 km/h quanto na máxima), mas o nosso “pré-série” vencia com menor consumo, situação onde o câmbio longo fez bem.
Gênios por trás dos 1000
Nós, da equipe da revista na época, tínhamos as ideias, mas atrás dessas ideias sempre há quem as faça acontecer. No caso do Gol e do Escort com motores 1.0 em 1991, tivemos dois grandes técnicos, que idealizaram o novo motor. Executaram novos virabrequins, bielas, acertos de cabeçote, novas carburações, comandos de válvulas etc.
Depois é necessário fazer com que o casamento de todas essas peças juntas dê certo: elas precisam trabalhar em harmonia, dando o máximo de potência e torque com o mínimo de consumo e emissões de poluentes. Trabalho que deve ser feito por engenheiros que normalmente são coordenados por um único homem, que tem visão geral do conjunto funcionando.
O primeiro deles foi o saudoso Eugênio Martins da Martins Perform. Ele, um ex-piloto da velha guarda (anos 50 e 60) era engenheiro de formação acadêmica. Depois de se aposentar das pistas, fundou uma grande empresa de construção civil, mas curtia mesmo os motores e carros de corrida. Foi ele e sua equipe quem fizeram o VW Gol.
Já no Rio Grande do Sul, o responsável pelo Ford Escort foi Clóvis de Moraes, tricampeão brasileiro de Fórmula Ford nos anos 70, que depois virou preparador de motores e um grande conhecedor dos powetrain da marca, inclusive desse Cleon Forte de projeto Renault adotado pela Ford, que viria a ser o CHT. Para esses gênios, nossas reverências e parabéns.
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