Quando a experiência de um preparador é melhor que os aparelhos de medição
Os fatos relatados nesse texto ocorreram no segundo semestre de 2001, quando estavam sendo preparados os carros da Fiat para as Mil Milhas que ocorreriam em janeiro de 2002. A equipe era composta, na época, por uma Marea Weekend Turbo, que seria pilotada por quatro jornalistas especializados, e dois Brava 2.0 16V, sendo um carro pilotado por outros três jornalistas, e o outro pilotado por um jornalista e dois pilotos oficiais de rallye da própria Fiat. Um time que, só de pilotos, éramos em dez, inclusive eu, Douglas Mendonça, que guiava um dos Brava.
A saber, a Marea Turbo tinha ao volante uma verdadeira ninhada de pilotos jornalistas: Christian Aparecido, Gabriel Marazzi, Edu Bernasconi e Eduardo Pincigher. Em uma das Brava estávamos eu, Emílio Camanzi e Sérgio Quintanilha. No terceiro carro, outra Brava, um único jornalista-piloto era o experiente e rápido Ricardo Dilser, que dividia o comando com Cunha e Tedesco, pilotos profissionais contratados pela Fiat para provas de rallye. A Weekend estava enquadrada em uma categoria que permitia a participação de carros com motores até 2.0 turbo, ou acima de 2.0 aspirado. As Brava estavam em outra categoria: a dos motores até 1.3 turbo ou até 2.0 aspirado.
Com o auxílio da Bosch, que ajudava a Fiat nessas empreitadas de competição, foi desenvolvido o motor da Marea Turbo, com a adoção de um intercooler com maior capacidade de resfriamento e calibração do motor para utilização de gasolina Pódium, de qualidade superior. Com isso e uma nova calibração do sistema de alimentação, o motor saiu dos 182 cv originais para 240 cv nesse mesmo propulsor recalibrado. A Bosch também auxiliou a Fiat na calibração de um motor que ficou conhecido entre nós, dentro da equipe, como “misto quente”: ele utilizava a parte de baixo do motor 2.0 da Alfa Romeo, e o cabeçote era o mesmo do propulsor Fiat 1.8 16V.
Essa mudança foi necessária porque a injeção Bosch MotorSport não comandaria as duas velas por cilindro do motor Alfa TwinSpark. Por isso, na época, optou-se por utilizar o bloco Alfa (com 2 litros de capacidade cúbica), e o cabeçote de duplo comando e quatro válvulas por cilindro que a Fiat tinha em seu 1.8 da época. Um monstrengo que, na realidade, tinha a origem de um mesmo projeto italiano Fiat e Alfa Romeo. Por isso o casamento perfeito entre as duas partes.
Para alimentar esse “misto quente”, a Bosch forneceu um corpo de borboletas de quatro entradas individuais por cilindro e um gestor que comandava a injeção e ignição em um mesmo módulo eletrônico. Claro que esse motor precisou ir ao dinamômetro para ser calibrado, tanto na curva de avanço da ignição quanto na mistura ar/combustível da injeção nos diversos regimes de rotações. Esse trabalho foi feito na Faculdade de Engenharia Mauá, no ABC Paulista, e o então jornalista-piloto-preparador Ricardo Dilser acompanhou isso de perto. A previsão da engenharia de motores da Fiat, pelos cálculos preliminares, era a de que o “misto quente” produzisse algo ao redor dos 170 cv, e o torque máximo deveria rodear os 20 mkgf.
Depois dos devidos amaciamentos, os motores começaram a ser calibrados, e os técnicos encarregados do acerto desses motores, indicados pela própria Bosch, chegaram aos 162 cv, e não passou disso. Estava, portanto, cerca de 8 cv abaixo da expectativa, e, aparentemente, não havia mais o que ser feito. Nesse ponto, entrou em cena a experiência do reconhecido e vitorioso preparador de motores Ico Cilento. A vida inteira, Ico se dedicou aos motores, tendo preparado carros para todas as categorias do automobilismo brasileiro desde os anos 70, entre eles a famosa Divisão 3 com os Fusca envenenados, Fórmula Super V, Stock Car, e por aí vai.
Cilento, então, foi ao dinamômetro, e era uma das primeiras vezes em que a velha guarda do carburador e do distribuidor encontrava sistemas digitais que comandavam alimentação e ignição, tudo em um mesmo módulo eletrônico, conversando entre si. Primeiro, Ico se encantou com a facilidade que a mistura poderia ser enriquecida ou empobrecida através de toques em uma tecla de notebook. E, da mesma forma, o ponto de ignição poderia ser adiantado ou atrasado, de acordo com as necessidades. Isso permitia uma calibração limpa e rápida, e a partir do momento em que se chegasse à calibração final, bastava registrar esses dados no módulo eletrônico, que ia memorizar e fazer o motor funcionar de acordo com aqueles parâmetros. Fantástico!
Mas ainda valia a experiência e sensibilidade de um preparador das antigas. Por mais que se operasse nesses comandos eletrônicos de injeção e ignição, o danado do motor “misto quente” não passava dos 162 cv. Ico Cilento, então, desligou o motor em teste e foi fazer, ele mesmo, os acertos dos detalhes, que fazem toda a diferença. Levou um disco de grau, prendeu na polia do motor, determinou o ponto-zero do virabrequim, soltou as duas polias dos dois comandos, tanto da admissão quanto do escapamento, e começou a fazer os seus caprichosos acertos na mecânica da máquina.
Depois de avançar alguns graus daqui, e retardar outros graus dali, disse pra rapaziada: “vamos reiniciar os testes, e a gente vê aonde chegaremos agora”. Os testes recomeçaram, e Ico não olhou ao painel de comando, ficando perto do vidro onde se via o motor funcionando na prova. Logo no início das marcações, o experiente preparador foi logo dizendo: “perceberam como ele gostou das mudanças que fiz? Ouçam bem como ele já mudou o barulho”. O pessoal que acompanhava o teste achou que o ruído estava igual, mas os resultados mostraram que a evolução era real. A partir daí, Ico ia dizendo: “enriquece um pouquinho a mistura, e adianta um pouco o ponto de ignição”. Logo em seguida ele já falava: “olha como o motor gostou, o barulho agora é outro, saudável!”.
Foram afinando o motor “misto quente” de acordo com as indicações do preparador e bingo: a máquina agora gerava 171 cv e 20,8 mkgf de torque máximo. Resultado dentro das expectativas da engenharia da Fiat e até um pouquinho acima. Tudo graças ao capricho, talento e dedicação de Ico Cilento. Na corrida, os carros foram muito bem nas doze extenuantes horas que durou a competição, mas, como é comum nessas aventuras, tivemos alguns acidentes de percurso. O importante é ressaltar que, com a vontade de competir e ganhar, e com capricho, dedicação e competência, se vai longe.
Os parabéns devem ser dados também à Carlos Henrique Ferreira, o Caíque, que acreditou no projeto e colocou os três carros da Fiat com 10 pilotos e uma equipe de mecânicos e cronometristas que deram brilho a todo esse evento. Na época, também a Bosch, que tanto foi parceira da Fiat e forneceu sua tecnologia para a ignição e injeção dos motores, que se mostraram potentes, econômicos e confiáveis. Tudo o que se quer em uma prova de longa duração. Para os pilotos? Uma diversão, um verdadeiro deleite de largar a meia-noite e terminar a corrida só depois do meio-dia do dia seguinte. Uma experiência de vida inesquecível!
Fotos: divulgação Fiat / reprodução
Douglas Mendonça é jornalista na área automobilística há 46 anos.
Trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e foi diretor de redação da revista Motor Show até 2016. Formado em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Engenharia Paulista (IEP).
Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e a Mil Quilômetros de Brasília em 2004.
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